segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Ilha de Deus é matéria no Jornal do Comércio.


Ilha das letras
ALFABETIZAÇÃO Adultos que largaram a escola voltam à sala de aula para descobrir palavras, números e cidadania
Marcela Balbino
mbalbino@jc.com.br
Nascida há 31 anos na Ilha de Deus, na Imbiribeira, Zona Sul do Recife, Lucidalva Severina Gomes cresceu pescando camarão com o pai e enfiando as mãos na lama para catar sururu. Aos 14 anos, abandonou a sala de aula para cuidar da casa e dos filhos. Quase duas décadas depois, volta à escola para se acertar com as palavras. Hoje, à luz do legado deixado por Paulo Freire, Lucidalva e outros 466 ribeirinhos do Estado ganham nova chance de ter acesso a um dos direitos mais defendidos pelo pedagogo: a cidadania através da educação. Ela é aluna do projeto Pescando Letras, que faz parte do Programa Paulo Freire, iniciativa do governo do Estado lançada em 2008.
Compartilhando a mesma realidade de Lucidalva, Geandra Maria Tavares, 29, retomou os estudos. Para ela, as palavras lhe soam familiar, seu grande adversário são os números. Na 5ª série ela abandonou a escola e encontrou no projeto uma oportunidade de quitar a dívida com a consciência. “Me arrependo de ter desistido de estudar, fico pensando que hoje poderia estar em um bom emprego e com outra vida. Mas estou correndo atrás, percebi que não tem idade para aprender”, afirma.
Após 15 anos da morte do pedagogo, as lições dialogam com o pensamento freireano que versa sobre ética, respeito e cidadania. Para tornar o princípio realidade, a premissa é que os educadores dividam o mesmo cotidiano dos alunos. Andréa Cristina Alves da Silva, 32, nasceu na Ilha e é uma das professoras. Como alfabetizadora, afirma que o processo não é fácil e é necessário jogo de cintura para alcançar o objetivo. “É preciso motivá-los e fazer com que tenham vontade de aprender, porque a maioria não teve acesso à escola, por falta de tempo, condições e estímulo. Recomeçar depois de tanto tempo é o grande desafio”, conta.
A educadora transporta a vida na Ilha, que passa por transformações urbanísticas e sociais, para o quadro-negro. Palavras como sururu, mangote, camarão e pesca, comuns à realidade ribeirinha, são aprisionadas nos papéis por mãos ainda inseguras com o lápis.
“Sabia escrever algumas palavras, mas engolia muitas letras. Não sabia que Brasil tinha R e tirava o H de Ilha. Tinha vergonha na hora que queria algum remédio e precisava escrever o nome num papel, porque não sabia o alfabeto”, conta Dalva, que recebe ajuda dos quatro filhos para responder as lições.
O caçula de Geandra, Vitor Tavares, 7, está na 2ª série e ajuda a mãe nas quatro operações. Os dois memorizam juntos a tabuada. “Ao término do projeto, previsto para outubro, ela afirma que vai continuar os estudos. “Meu sonho é ser veterinária”, confidencia Geandra, que ao fim da entrevista recitou, meio hesitante, trecho do poema Morte e Vida Severina, do pernambucano João Cabral de Melo Neto.
Segundo a coordenadora-executiva do Programa Paulo Freire, Vera Capucho, a alfabetização é realizada em conexão com noções de direitos humanos. “Eles são alfabetizados no conhecimento das letras, dos números e dos direitos que lhes são legítimos, mas muitas vezes desconhecidos. A educação é a porta de entrada para uma cidadania mais ampla.”

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